terça-feira, 25 de agosto de 2009

CIÊNCIAS DO CÉREBRO: RESUMO DO CAPITULO – O ESPIRITO DENTRO DA MÁQUINA


As pessoas com transtorno fronteiriço de personalidade sofrem também de impulsividade, um dos sintomas da doença. Atualmente, há alguns indícios iniciais que ligam a impulsividade a um mau funcionamento na parte mais dianteira do cérebro (o lobo frontal), impedindo a ação das inibições.

A abordagem que consiste no mapeamento das funções cerebrais, ligando-as a regiões específicas do cérebro, forma a base da neurologia, o campo das especialidades médicas que trata das doenças do sistema nervoso. Há cem anos se descobriu muitas coisas sobre o seu funcionamento. Sabia-se, por exemplo, descrever detalhadamente os locais no cérebro que controlavam os movimentos dos membros do corpo e do rosto. Sabia-se também que esses locais estavam organizados no cérebro numa espécie de “mapa” que representa o corpo. Conheciam-se os circuitos nervosos que levavam dos olhos à região cerebral que decodifica o que vemos, e também as regiões no lado esquerdo do cérebro responsáveis pela fala e pela compreensão do que ouvimos e lemos.

Mas, quanto à parte das funções cerebrais que se costuma chamar de superiores – como o pensamento abstrato, a memória, os sentimentos, o comportamento social e os estados de espíritos –, os indícios se contradiziam quanto a sua localização, e até quarenta anos atrás os pesquisadores não tinham muitas esperanças de vir a localizá-las algum dia. Essas funções superiores, das quais tratam a psicologia e a psiquiatria, são as que nos interessam aqui, no caso específico a impulsividade. Pânico, depressão, distorções da imagem corporal e da auto-imagem, obsessões, impulsividade violenta, tudo isso deriva de problemas nas funções superiores do sistema nervoso central.

Atrás da expressão sistema nervoso central, encontram os seguintes componentes: o cérebro e a medula. Esta última, na verdade, é um grosso cabo de conexão dentro do qual existe um conjunto de circuitos nervosos que transportam estímulos sensórios do corpo para o cérebro, e instruções do cérebro para a atividade muscular do corpo. O cérebro é composto de dois hemisférios não simétricos em seu funcionamento. Numa generalização é possível dizer que o hemisfério esquerdo sabe ler e falar, enquanto o direito entende sentimentos e nuances não-verbais. O hemisfério esquerdo está geralmente alegre, e o direto, triste. Cada hemisfério se divide em quatro lobos (lobo frontal, lobo temporal, lobo parietal e lobo occipital), e cada um desses lobos tem funções especificas. De um modo geral, é possível dizer que o lobo occipital vê, o lobo temporal ouve, o lobo parietal dá coerência e coordena todas as informações sensoriais que chegam ao cérebro, e o lobo frontal é, aparentemente, parte do que torna o homem “humano” – é onde se localizam as capacidades de planejamento a longo prazo, da autoconsciência e da consciência social, do pensamento abstrato e do controle dos impulsos, além do controle de todos os músculos do corpo. Esses quatro lobos constituem, em conjunto, o córtex cerebral, cujos sulcos retorcidos lhe dão seu aspecto característico.

Sabe-se hoje, que a maioria dos distúrbios psicológicos está ligada a perturbações específicas no funcionamento do cérebro. Mas, ao contrário dos distúrbios que tratam os neurologistas, a maioria dos problemas enfrentados por psicólogos e psiquiatras não são provocados por “furos” ou outras lesões anatômicas. Ocorrem devido a ligeiras modificações no funcionamento das partes cerebrais.

A influência da destruição total de alguma parte do cérebro por doença ou acidente parece por vezes a que exerce uma perturbação no seu funcionamento.

A consideração social e o controle da impulsividade não são fenômenos que se processam inteiramente na parte dianteira e interna do lobo frontal. Essa região do cérebro é parte de um circuito do qual fazem parte outras áreas, e ela é a responsável pelo seu funcionamento. Uma lesão neste local quebra o circuito, e desse modo impede o autocontrole.

Mas onde passa a fronteira entre uma falha no funcionamento cerebral e uma falta de caráter? Não seriam ambas as coisas as duas faces de uma mesma moeda? Essas perguntas pertencem ao campo da neuropsicologia, que investiga as ligações entre as lesões cerebrais e os distúrbios psíquicos.

A neuropsicologia surgiu como uma obra de um único homem, o psicólogo russo Aleksander Romanovitch Luria.

Os pacientes de Luria sofriam de derrames cerebrais, de tumores ou de traumatismos cranianos graves. Todos esses fatores provocam danos localizados em algum ponto do cérebro. Com base nos métodos investigativos e neurológico clássicos, utilizados por ele, e seu contato com centenas e talvez milhares de pacientes, Luria formou uma imagem complexa das funções cerebrais e de seus vínculos com o psiquismo. O seu objetivo era vincular estruturas psicológicas a estruturas cerebrais. Em outras palavras, o modelo de Luria e Solms procura mapear a alma e suas regiões, conforme as conhecem os psicólogos, vinculando-as ao cérebro e suas partes segundo o conhecimento neurológico. Por essa abordagem geográfica é possível descrever no cérebro três partes, casa uma com suas características e suas funções: a área da recepção; a instintiva; e a área diretora.

A área da recepção processa as informações e as memoriza. É composta por todas as partes posteriores do córtex cerebral, e pela maior parte do sistema límbico, constituído pelo hipocampo, pelos núcleos da amígdala e por outros componentes localizados no interior do cérebro. Essas duas grandes partes recebem informações de duas fontes diversas: tudo aquilo que vem de fora – ou seja, tudo o que vemos, ouvimos e tocamos – chega à região posterior do córtex cerebral e lá é processado. É possível dizer, do mesmo modo como o córtex posterior capta o mundo externo a nossa volta, o sistema límbico é receptor do que se passa em nosso interior. Ao longo do desenvolvimento humano são criadas e aperfeiçoadas as ligações entre as várias partes que integram o sistema receptor. É desse modo que se formam as associações entre imagens, sons, cheiros e sensações, e também as associações entre as imagens de certos seres humanos e as sensações que esses nos provocam. E assim, aos poucos, a profusão de estímulos que nos atingem sem cessar começa a adquirir um sentido específico para cada um de nós.

Os dois hemisférios cerebrais diferem quanto às funções, principalmente naquelas áreas que se ligam a mais de um órgão dos sentidos (olhos, ouvidos) e integram informações provenientes de várias fontes sensórias. Os hemisférios não diferem apenas no aspecto funcional – são também regidos por leis diferentes. Uma grande área do hemisfério direito processa imagens e memórias do mundo como uma coleção de objetos inteiros. Todas as informações sobre cada objeto desses se aglomeram numa figura inteira e única do objeto, ao qual é atribuída, às vezes, também um significado emocional. Essas operações são realizadas no lado direito do cérebro, rápida e paralelamente.

No hemisfério esquerdo o mundo é captado não como uma série de objetos no espaço, mas como uma cadeia organizada de símbolos e palavras. As palavras são símbolos simples de objetos complexos, que fazem o pensamento por meio de palavras ser veloz e eficiente. Lesões nesse hemisfério podem provocar afasia, que consiste na perda da capacidade de falar ou de compreender falas ou textos escritos. O hemisfério direito não processa símbolos e sim objetos, e por esse motivo ele é mais intuitivo que o esquerdo.

A área instintiva do cérebro é a segunda das três partes, segundo Luria e Solms. É uma região muito pequena, mas suas influências têm longo alcance, chegando a todos os lugares no cérebro, no corpo e no psiquismo. Compõe-se de partes do tronco cerebral e do hipotálamo. Essa região é a responsável pelo nosso estado de espírito: vivacidade ou cansaço, fome e sede, desejo sexual ou saciedade, iniciativa e energia ou indiferença. Ou seja, nessa pequena região do cérebro residem os impulsos. É nela que se originam os instintos, os desejos e os impulsos que tão frequentemente nos dominam. Uma parte do processo de amadurecimento, na adolescência, consiste no domínio gradual e parcial sobre essa parte. O adulto, ao contrário do bebê, nem sempre faz o que tem vontade. Faz apenas o que é possível ou o que vale a pena ser feito, levando em conta o que há à sua volta e aquilo que é permitido ou proibido naquele momento.

A região diretora, a terceira região no modelo de Luria e Solms, é aquela que sofreu o impacto direto e localizado no cérebro de Phineas Gage (personagem clássico da literatura médica que sofreu um acidente em que teve a parte inferior dos lobos frontais perfurada por uma barra de ferro). Essa parte contém os dois lobos frontais inteiros, tanto o direito quanto o esquerdo. Sua função psíquica é coordenar, averiguar e controlar tudo o que fazemos. Diferente da região posterior do cérebro, que enxerga o mundo como um conjunto de objeto ou símbolos percebidos simultânea e paralelamente, a região anterior ou frontal vê o mundo como uma sucessão de acontecimentos na qual existe uma diferença entre o antes e o depois. Numa generalização aproximada, podemos dizer que a região cerebral posterior se orienta no espaço e que a região anterior se orienta no tempo. Como é sabido, Phineas Gage perdeu a capacidade de planejar o futuro de modo racional, e talvez tenha passado a ter dificuldades até mesmo de imaginá-lo. Sua capacidade de prever as conseqüências sociais de seus atos também ficou prejudicada. Essas dificuldades, aparentemente, estavam ligadas à lesão naquela área específica dos seus lobos frontais.

Além de tudo isso, uma das importantes funções dos lobos frontais é por rédeas à atividade dos demais componentes do cérebro, entre eles, a área instintiva onde residem os impulsos.

Nos últimos anos foram publicados, na literatura profissional, duas pesquisas que utilizaram a visualização funcional do cérebro para investigar a atividade cerebral de homens e mulheres com transtorno fronteiriço da personalidade, comparando-a com a atividade cerebral de pessoas “normais”. As duas pesquisas chegaram a conclusões parecidas: os que sofrem do transtorno fronteiriço da personalidade sofrem também de um déficit específico da atividade na parte dianteira central dos seus lobos frontais.

A maioria dos que sofrem desse distúrbio, é capaz de, em certos momentos, explodir com alguém. Mas sua impulsividade e sua violência, que talvez tenham origem no mau funcionamento de seus lobos frontais, são muito mais perigosas para ela mesma.

A pesquisa do psicólogo Adrian Rain, com a amostra de uns vinte assassinos, com características impulsivas, condenados pela justiça à pena de morte, e que foram submetidos a exames de visualização funcional e juntamente com um grupo controle, concluiu que quase todos os assassinos impulsivos apresentavam graves perturbações na atividade dos lobos frontais, exatamente na mesma região que tinha sido eliminada do cérebro de Phineas Gage.

Uma das características do transtorno fronteiriço de personalidade é entrada do paciente, rapidamente, numa situação de perda de controle quase total, e com a mesma velocidade sair dela e voltar a agir normalmente.

A psicoterapia quando bem sucedida, muda não só a alma e o comportamento, mas também o cérebro.

Nos últimos anos acumularam-se muitos indícios de que lesões localizadas na parte dianteira e média dos lobos frontais podem levar a comportamentos impulsivos. Nem todos os casos são tão dramáticos como o de Phineas Gage.

Quando o temperamento de uma pessoa muda depois de um acidente em que ocorreu uma leve pancada na cabeça, há duas possibilidades para entender o que aconteceu. Uma delas é que surgiu uma angústia pós-traumática em razão do acidente, pois ela pode aparecer depois de uma episódio em que há risco de vida, manifestado-se por meio de raiva e impulsividade. A outra possibilidade é a de que o acidente tenha provocado uma pequena lesão na parte dianteira dos lobos frontais. Isso pode acontecer quando, num acidente, a cabeça é projetada para a frente e bate em alguma coisa. Nem sempre é fácil distinguir entre essas duas possibilidades, e as vezes ocorrem ambas. O fato de a tomografia não indicar lesão cerebral não exclui a possibilidade de algum dano ligeiro, a ponto de não ser detectado pelo exame mas que, ainda assim, influencie o comportamento.

Logo, fazendo uma retrospectiva na evolução das neurociências podemos afirmar que temos uma dívida de gratidão para com Phineas Gage e John Harlow (o médico que o atendeu e relatou o caso), que nos ajudaram a entender como um dos aspectos da nossa alma está ligado ao cérebro.


YORAM YOVELL
em O inimigo no meu quarto e outras histórias da psicanálise
Capitulo: O espírito dentro da máquina (anatomia da alma) p. 357-380
Rio de Janeiro: Record, 2008

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* Mentes Inquietas - TDAH: desatenção, hiperatividade e impulsividade - ANA BEATRIZ BARBOSA SILVA

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